
Entrevista com Marcos Barbosa dos Santos, licenciado em música pela FACESA – Faculdade Evangélica de Salvador e pós-graduado em Musicoterapia pela Faculdade Hélio Rocha.
Berna Farias
Jornalista DRT/BA 1158
Cantar, dançar, orar e ser feliz. Não parece possível, mas isto se dá em meio à pandemia no Centro de Tratamento Covid-19, hospital de campanha que ocupa alas do antigo Hospital Espanhol, na Barra. Antes limitada às enfermarias e UTI, a musicoterapia tomou também as varandas e, antes destinada aos pacientes, passou a ser aplicada a todo o corpo funcional. São duas ações: “Música na Varanda” e “Música Une”, conduzidas pelo musicoterapeuta Marcos Barbosa dos Santos, licenciado em Música pela FACESA – Faculdade Evangélica de Salvador e pós graduado em Musicoterapia pela Faculdade Hélio Rocha.
Desde maio, ele levou os sons terapêuticos ao ambiente hospitalar, uma ação pensada como forma de humanizar o tratamento aos pacientes, que não contam sequer com a visita de familiares, o que aumenta a sensação de isolamento e traz medo e insegurança. A crise de um paciente, que ateou fogo ao colchão e tentou se jogar da janela, despertou a direção do Centro de Tratamento, à frente o infectologista Roberto Badaró, para a necessidade de práticas que proporcionassem relaxamento e bem-estar aos pacientes. A musicoterapia, ainda pouco conhecida, transformou-se em uma ferramenta importante para reduzir o stress de funcionários e pacientes e proporcionar maior interatividade entre todos.
“Quando cheguei, encontrei os pacientes ansiosos e a equipe cansada do stress do dia a dia. Tentei trazer tranquilidade a eles. Tem pacientes que ficam mais de um mês sem contato familiar e sentem muito medo, muitos deles acham que entram no hospital e já vão morrer, entram em depressão. A música vem para melhorar o ambiente hospitalar e melhorar a saúde mental desses pacientes”, relata Marcos. A equipe de apoio, ele ressalta, também sente medo, principalmente de contaminar os seus familiares. “O relato dos pacientes é que a música traz paz, tranquilidade, confiança e até a fé, mexe com o lado espiritual. Eles se sentem renovados, muitas vezes ocorre o choro de alegria, de alívio, se sentem acalentados”.
O atendimento é feito nas enfermarias, de forma individualizada, e mesmo na Unidade de Terapia Intensiva. Quando o paciente tem condições de locomoção ou enfrenta um quadro depressivo, é feito um trabalho mais intensivo, geralmente na varanda, onde a vista para o mar reforça a sensação de bem-estar. Daí surgiu a atividade “Música na Varanda”, normalmente executada ao pôr do sol. Segundo o musicoterapeuta, a oferta natural de uma vista maravilhosa contribui muito para elevar o ânimo dos pacientes e, consequentemente, para a cura. “Os pacientes ficam deslumbrados. Proporcionar um ambiente agradável melhora bastante o humor de quem está doente”.
Os pacientes em condições físicas de caminharem pequenos trechos são acompanhados pela equipe de psicologia, durante o passeio à varanda. Muitos deles cantam, dançam, descontraem. A paciente Maria da Conceição Silva Souza, 58, quando participou pela primeira vez, cantou, dançou, orou e se disse feliz, ao voltar para o seu quarto: “Senti a presença de Deus aqui. Me curou! Estou muito alegre, muito feliz da vida“. Embora exercida de forma restrita – na sessão normal o paciente pode tocar o instrumento musical, o que não é possível agora – o retorno é gratificante. “Familiares de uma senhora da cidade de Senhor do Bonfim, que estava na UTI, dizem que ela foi curada por meio da musica”, conta Marcos.
A empatia é essencial. “Quando a gente chega”, diz o musicoterapeuta, “tem apenas o nome na porta do quarto e a indicação se é paciente positivo ou em suspeita de Covid. Quando a gente abre a porta e tem o primeiro contato com aquele paciente, não tem noção de como ele está psicologicamente, se ele vai aceitar bem o trabalho. Cada porta que se abre é uma novidade, e como a gente vai lidar com isso? Quase todos aceitam. Quando a gente começa o trabalho eles se emocionam, e ao final há relatos grandiosos de como a música mexeu com eles. Foi excelente essa percepção de trazer o trabalho de musicoterapia nesse momento porque tem, sim, melhorado a vida dos pacientes”.
A música une
Os sons já faziam parte do cotidiano do Centro de Tratamento Covid-19 antes mesmo da ação “Música na Varanda”. Seis funcionários montaram uma banda musical para promover o relaxamento das equipes nos intervalos dos plantões no projeto “Musica Une”. As atuações ocorrem quinzenalmente, em dias diferentes da semana para alcançar o maior número possível de colaboradores de todas as áreas de atendimento, incluindo a administrativa, e o cenário não podia ser mais apropriado: a balaustrada interna superior do Hospital Espanhol, com vista para a Baía de Todos os Santos e o Farol da Barra.
Considerados verdadeiros “heróis da saúde”, esses profissionais enfrentam níveis altos de stress: muitos se colocam em isolamento familiar, por amor e preocupação com seus entes queridos, e também necessitam serem cuidados. “Quando cheguei, o projeto já existia, e fui chamado para assumir a coordenação. O projeto começou com a coordenadora da Farmácia, Patrícia, e psicólogos, inclusive um deles, Flávio, é guitarrista. É uma ação necessária, uma atenção para todo o corpo funcional do hospital”, afirma o musicoterapeuta.
O projeto reúne médicos, enfermeiros, psicólogos, maqueiros, recepcionistas, pessoal administrativo e de TI (Tecnologia da Informação), técnicos de enfermagem e de manutenção, seguranças, etc., todos em busca de um momento de paz na tensão constante que é o trabalho intenso em um hospital de campanha. Ansiedade, medo de contágio, o rompimento da relação estabelecida com o paciente quando acontece o óbito, a dificuldade de lidar com uma doença com tantos aspectos ainda desconhecidos e surpreendentes, tudo vai se acumulando e a música funciona como uma válvula de escape.
A atividade acontece no intervalo de almoço e no final da tarde, acompanhando o pôr do sol da orla da Barra, que costuma ser um show à parte. No repertório, MPB. Nas mãos dos músicos, violão, guitarra, cajón (instrumento de percussão) e microfones. Na plateia, outros heróis da saúde que vão deixar suas capas de EPI penduradas, por alguns minutos, para respirar o ar puro, apreciar o mar, sentir a brisa sob mangueiras, dançar, cantar, relaxar. A psicóloga Carolina Vidal, que assistiu à primeira apresentação do projeto, considerou uma experiência incrível: "Nunca lutamos em algo parecido. Viver um momento de paz e calmaria no meio dessa guerra toda, com música, é muito relaxante".
Arte e ar puro é a combinação perfeita. "Participei da estreia do “Música Une”, um momento único. É muito importante a gente conseguir trazer a música para o ambiente hospitalar. Conseguir mostrar algo diferente para a equipe de colegas. Sair um pouco da unidade fechada que é onde convivemos diariamente e ter a oportunidade de vir aqui para fora. Ter um pouco de ar e de arte", afirma o médico intensivista Sérgio Doria, que atua nas UTIS e toca violão no grupo. A ideia é relaxar corpo e mente, recarregar a energia para as longas jornadas de enfrentamento da doença causada pelo novo coronavírus.
Mais de 1,2 mil pacientes já foram atendidos no hospital de campanha de 22 de abril, quando foi inaugurado, a 21 de agosto.
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